sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Jerimulândia



Plínio Sanderson*

Termo lapidado por Othoniel Menezes, poeta nativista de “Sertão de Espinho e Flor”, para designar a praieira dos nossos amores. Cidade erigida por decreto. Nunca foi vila ou freguesia. Recebeu os agnomes: Cidade dos Reis, Cidade de Santiago, Natalópolis, Nova Amsterdã, Jerimulândia, Londres Nordestina, Natalvesmaia. Sua fundação é impregnada na nebulosa da polêmica. Quem seria seu signatário: Jerônimo de Albuquerque, João Rodrigues Colaço ou Mascarenhas Homem?

Impressões e controvérsias. Frei Luís Santa Tereza, “Da Cidade de Natal, não há tal” (1746). No quengo de Manuel Dantas, “Natal já é hoje antiga e será eterna como o mundo, porque nasceu envolta na lenda”. Cascudo revela: “A cidade do Natal, fundada no séc. XVI, nasceu no séc. XX. Os intermediários de história guerreira, política ou dorminhoca. Faz de conta que não existiram”.

Na contemporaneidade, a cidade quanto mais imbuída na mundialidade, mais apartada da sua história. Pela mediação do cotidiano no lugar, somos levados dos fatos particulares à sociedade global.

O turismo é a parcela essencial do espaço que se transforma em mercadoria. A entrada da cidade no mercado das paisagens acarreta transformações sócio-espaciais impulsionadas pelo desenvolvimento desse vetor econômico. A produção de lugares de consumo e o consumo dos lugares redesenham a urbe, impondo-lhe formas, funções e imagens completamente novas.

No contexto dos anos 90, temos imbricado: os resquícios da urbanização industrial periférica (abortada) e uma emergente forma de urbanização – a turística. Essa redefinição se expressa no novo imaginário da região, em que o Nordeste litorâneo subjuga o Nordeste do atraso profundo das secas. A cidade coloca-se no mundo para ser o nosso lugar. Território encantado, repleto de significações. Cabe ao citadino ler o texto social impresso nas paisagens, decifrar suas aderências, seus entraves e (transpondo as aparências) suas alienações.

No livro “Massacre da Natureza” de Júlio Chiavenato (Moderna, 2005): “Grandes cidades, e até capitais, como Natal, no Rio Grande do Norte, não possuem redes de esgoto: usam-se fossas”. Não sabe o autor que dois terços do reduzido percentual de saneamento (em torno de 31%) é despejada ‘in natura’ no leito do rio arrimo. Na Paraíba, a simples execução do bolero de Ravel no ocaso ribeirinho demarcou um evento turístico. Nós demos as costas ao Rio Grande – “sem ter quem lhe conceda a extrema-unção de um beijo”. Oswaldo Lamartine segredou para Diógenes da Cunha: Natal não existe! O que chamamos de Natal é apenas o assoreamento da beleza do Potengi.

Os raros espaços de lazer são equivocados ou expropriados... A ciclovia da Via Costeira encontra-se em estado deplorável, os hotéis utilizam como canteiro de obra, os malfazejos buracos e cimentos petrificados tornam o passeio perigoso, impraticável. Nas reurbanizações praianas (Ponta Negra, Artistas/Forte, Avenida Roberto Freire) os calçadões foram construídos com pedras portuguesas, que por ser um piso irregular não favorece as atividades esportivas. Obra pensada esteticamente, sem considerar a real utilização do aparelho urbano pela população. Mentalidade barroco-tropical nas intervenções urbanísticas.

A pólis é arquitetada priorizando o tráfego automobilístico. Nos três viadutos construídos no governo passado, a ausência de passarelas revela a insignificância dos pedestres. A cidadania é ratificada pela propriedade de um bólido: quem não possui um carro na pós-modernidade é um pária. Embaixo do viaduto do Baldo converge um frenético movimento de transeuntes, que arriscam a vida na travessia diariamente improvisada. Há décadas que a população clama (em vão) por uma simples e providencial passarela.

No Tirol, tem uma lagoa escura, um recanto verde no meio da selva de prédios. Vizinha ao rio Tiuru (rio da água de beber), foi horto, aviário na segunda guerra, ponto chique nos anos 60 e oásis para travessuras adolescentes. Hoje, a Lagoa Manuel Felipe encontra-se poluída, escondida e acabrunhada. Premente resgatar a cavilosa Lagoa. Para mostrá-la, exibi-la, devolvê-la aos natalenses, basta derrubar o muro da Prudente de Morais.

Urge inserir a Lagoa na paisagem da cidade!

A ponte forte-redinha é exemplo hilário, se não trágico; uma obra na hora certa, mas no lugar errado. A prioridade não foi resolver o constrangimento da população (“do outro lado do rio”, além da “ponte da exclusão”, discriminados pelo preconceito e segregados na generalização de a “Zona Norte”) dos humilhantes congestionamentos diários, mas uma obra para perpetuar no horizonte um ícone administrativo – nas entranhas salobras da boca da barra, corcova de concreto encravada. A organização do espaço urbano prepara a geografia da cidade de forma a viabilizar os interesses político/privado. Pragmatizando uma neo-euro-colonização que retalha o litoral numa desenfreada especulação imobiliária, estigmatizando as populações locais.

Escabrosa é a pendenga da pretensa área de lazer de Mãe Luiza, os hoteleiros não querem permitir que a comunidade tenha usufruto e mesmo livre acesso à praia. Recentemente, almejaram até expropriar toda a área da Via Costeira ou legalizar a privatização da praia – que, na prática, já existe. Típico apartrade turístico, perverso e alienante.

Na Natal balneária, somos vítimas da exacerbação do modelo de urbanização litorâneo brasileiro. A contradição entre o processo de produção social do espaço e sua apropriação privada diferencia os modos de consumo do lugar. Os lugares da cidade se delimitam, se fecham e se tornam exclusivos. O lugar não existe plenamente para todos. Outrora, Othoniel vaticinou à “Jerimulândia” o carma do “pecado original de haver nascido na Esquina”.

*poeta, antropólogo e geógrafo.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Porto da Limpa


Eduardo Alexandre

No porto da Limpa,
Canto do Mangue,
praça das Jangadas,
o rio dos Urubus desaguava excessos
da que seria chamada lagoa do Jacob.

Pouso de franceses, portugueses, holandeses
catalinas, belonaves 
Pouso de primeiras missivas transoceânicas

Dizem pouso até
de príncipe santo 
Exupéry

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

CASCUDO E CAR(NA)TÉIS



Plínio Sanderson

Verossímil ao tempo, a terra não pára. A proximidade com o solstício de verão austral, traz a estação do desejo aos trópicos dos pecados tórridos. Um fim de ano marcado por dois eventos emblemáticos, mas díspares: a I Mostra de Cultura Popular, promovida esplendidamente pela Secretaria Estadual de Educação, e, no extremo antagônico, o Carnatal, produzido pela Destaque.

A Mostra revelou o elefante e suas entranhas mais sagradas: o sincretismo cultural. A idéia da profª. Isaura Rosado de pragmatizar a educação via cultura é antídoto infalível contra a homogeneização global da aldeia. A invenção e a auto-estima popular se reencontram em suas vestes mais íntimas: Bois Calembas, Fandangos, Pastorinhas, Caboclinhos, Cheganças, Lapinhas, Congos (de Saiotes ou Calçolas), Ararunas, Maneiros-paus, etc. Tatuando nos corpos (docentes e discentes) práticas quase extintas ou semi-desaparecidas do imaginário coletivo. Cascudo redimido acenderá charutos, regozijando-se ao deleite das peripécias da massa em evoluções.

O Carnatal, maior evento do estado, encontrou porto seguro na nossa cidade, sempre travestida de modernidade, seduzida pelo “outro”, fadada à aculturação. A Baianidade, azeitada pelo caldeamento de todos os santos e raças, lança ritmos e concomitantemente consolida mercado, numa estratégia perfeita - sem crise, nem baixa estação.

Os defensores proferem argumentos hiperbólicos (“é o maior fora de época do...”) ou naturalizam (“é gerador de renda e emprego”).

De um lado, o Carnatal, do outro, a fome geral catando latinhas.

Papangus modernosos, fantasiados de abadébeis e a corriola, pipocando além das fronteiras marginalizantes das cordas. Aqui, essa indústria transforma e transtorna a cidade, que passa por toda uma reengenharia do trânsito, da iluminação, na segurança/policiamento e na saúde, os serviços públicos tornam-se otimizados, com aparatos eficientes, enquanto que, no cotidiano real...

Car(na)téis. Na horda da política (estadual e municipal) orbitam vereadores, deputados, secretários interagindo numa clara intervenção estatal no processo de acumulaçãode riqueza, introduzindo novos elementos para dinamizar a economia, sob a égide do turismo e do folclore artificial. A configuração do poder local, em comunhão com os principais grupos econômicos, sincronizam interesses ávidos, que convergem para a sustentação da animosidade carnabestial.

O escritor Giba Felisberto Vasconcelos, brincava no Bar Mintchura em meados dos 80, apelando para Maiakovski, "se existe um homem feliz, é lá no Brasil, afirmava convicto, e só pode ser o Cascudo". Giba, colunista da revista “Caros Amigos”, cita e recita o “Príncipe do Tirol” em todos os seus artigos. Recentemente, chama o Luís da Câmara de “o filósofo do povo brasileiro”. E critica a “professorança universitária”, que prefere erigir pensadores estrangeiros como Lacan, Fucô, Weber, e não leva a sério o santo (de casa) fazedor de milagres. “O pior de tudo que nem mesmo em Natal, aonde o mestre veio ao mundo, ele não é assimilado na Universidade e em outras instituições, ou seja, a sua obra ainda não se converteu em força material. Para desgraça e infortúnio do povo potiguar”.

O advento da Mostra Popular deve simbolizar a pedra fundamental no resgate de nossa memória. Quem sabe, inaugurar uma cruzada pela inserção da disciplina “Literatura Norte-riograndense” na grade curricular – em estados vizinhos, já se cobra em concursos o conhecimento em suas literaturas peculiares. Não é apenas reserva de mercado, mas uma forma eficaz de cultuar personagens, imortalizando-os através de suas obras. Uma leitura ou grafia, atribuindo sentido aos espaços imagéticos do RN, revisitando desde a concretude processual (o “suspenso” de Jorge Fernandes; os visuais e semióticos de Falves; A. de Araújo, Jota Medeiros), até a identidade com o chão profundo no nativismo de Itajubá, Auta, Manuel Dantas, Palmyra, Otoniel...

Vivalha a lamaravilha. A SAMBA (Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências), em movimento de resistência ao estorvo micareta, realiza o II Carnabeco, homenageando foliões etéreos e eternos: Maestro Mainha, Lelo Melodia, Blackout, Boscopeta.

Axé ou oxente? Um paralelo de parabélum na língua - mais forte são os saberes do povo!

Publicado Jornal de Hoje - 12/03/05